quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

TOP DE LINHA

Duílio começou roubando na feira. Bolsas. Carteiras. Senhoras e senhores descuidados. Depois centro da cidade. Continuou o descuidismo. Qualquer objeto que se distraísse do dono passava a ser seu. Guardava dinheiro. Queria comprar uma arma e tomar posse de objetos maiores. Queria na verdade ser top de linha. Entrar pela porta da frente do banco com um fuzil na mão. Gritando. Por enquanto a padaria do bairro e a farmácia serviam. Surgiu a oportunidade. Precisavam de um cara pra entrar gritando num banco com um fuzil na mão e ele se apresentou. Finalmente seria um top de linha. Mas o que ele não sabia é que os tops de linha sempre usavam um novato como bucha de canhão. O anteparo para o primeiro tiro. E ele levou o primeiro tiro e o segundo e um terceiro. Apagou. Acordou algemado na cama do hospital. E não precisava ser top de linha pra saber que o silêncio é amigo da vida e irmão da dor. Os policiais o interrogaram com uma mão em cima do ferimento. Pressionaram até que ele desmaiasse. Acordava e dormia. Ainda estava vivo quando transferiram seu corpo para outra maca e ficou assistindo as luzes do corredor iluminando seu rosto. Entrou na ambulância. Estava muito cansado daquilo tudo. Reconheceu a voz que chamava seu nome. Alguns dos seus colegas estavam ali na ambulância disfarçados de enfermeiros. Viemos te buscar disseram. Guardamos sua parte. Você é o cara. De boca fechada não sai palavra e nem entra comida suja. Duílio estava feliz. Alcançou seu sonho. Era um top de linha. Agora podia descansar. Fechou os olhos. Mas não sabia que era pela última vez.

terça-feira, 12 de abril de 2011

SOM NO ÔNIBUS

Toma.
O que é isso?
Um fone de ouvido.
Sim, eu sei, mas pra quê eu quero isso?
Isso serve pra colocar no ouvido. Você enfia esse plugue aqui no celular e essas duas almofadinhas aqui, tá vendo Você enfia cada uma em um dos ouvidos...
Sim, eu sei como usa, não tô entendendo porque você tá me dando isso.
Pra você ouvir a sua musiquinha bem baixinho sem precisar a gente ficar ouvindo, entendeu agora?
Mas eu não quero ouvir no fone de ouvido, quero ouvir assim como tô ouvindo.
Mas acontece que a gente não tá afim de ouvir essa sua música.
A gente quem? Por acaso você tem procuração pra falar pelos outros? Se você tá incomodado que assuma sozinho.
Eu tô incomodado e muita gente aqui também tá. Só que eu tenho coragem de falar e os outros ficam calados.
Bom cara, problema teu. Eu não vou botar esse trocinho no ouvido não. Isso ofende o ouvido sabia?
Quem ofende o ouvido é esse som que você tá ouvido
Um pau que ofende...
Olha a baixaria, to falando com educação, tem criança e senhoras aqui no recinto.
Pra teu governo não vou baixar o som não, cara. E aí tu vai fazer o quê? Vai me bater, vai me jogar pela janela e aí?
Preste atenção, você ainda é muito jovem, seus pais não lhe deram boa educação...
Não vem falar da minha mãe não cara, tá me estranhando? Qual é?
Nós estamos num coletivo. Sabe o que significa coletivo?
Sei, cardume é de peixe, esquadria é de avião, coletivo de otário é tu e tua família toda.
Tô já perdendo a paciência contigo, não me ofende não nem minha família. Otário é você com esse som ridículo.
E aí vai perder a paciência e vai fazer o quê pra achar ela, vai me bater, vai jogar meu som fora? Não enche meu saco não cara. Fica na tua é melhor pra tu.
Como eu tava dizendo estamos num coletivo e é preciso respeitar os que estão dentro do coletivo, não fazer barulho, respeitar o espaço do outro, tratar com civilidade às pessoas...
Olha cara, tás parecendo meu professor de cidadania, to afim não, já larguei, vai te catar. Se tu queria impedir que eu ouvisse meu som conseguisse. Vou descer nessa. Da próxima vez que eu te encontrar e vier com esse papo de desligar meu som, não vai prestar não cara.
Isso é uma ameaça?
É só um aviso. Vou te ensinar onde colocar o plugue.
Vai cara, já vai tarde.
O rapaz desce e faz gestos obscenos para o outro que ficou no ônibus.
Olha só que juventude é essa, não respeita ninguém. Mas pelo menos durante a discussão não ouvimos aquela música horrível.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O OBREIRO E A DIABAZINHA

Pelo vão da porta do ônibus aberta Dalva põe a cabeça e pergunta ao motorista:
- Adeilton tá por aí?
- quem senhora?
- Adeilton, meu marido, ele tá nesse ônibus?
Uma pessoa na parada do ônibus gesticula pra o motorista que se trata de uma maluca. O motorista desconversa e dá a partida.
Adeilton fugiu num ônibus igual àquele num final de tarde juntamente com a vizinha menor de quinze anos. A tal que andava com aqueles shortinhos, com aquelas blusinhas, mostrando tudo. Adeilton era casado com Dalva, não tinha filhos, homem bom e generoso, não bebia, não fumava, nem gritava em casa nem na rua. Era obreiro numa igreja evangélica e um dia a mãe da vizinha veio pedir ajuda pra filhinha de quinze anos que estava parecendo possessa, querendo quebrar as coisas dentro de casa, Adeilton, bondoso, na intenção de minimizar o sofrimento daquela mãe desesperada, prontificou-se em ajudar e foi até a casa carregando a bíblia. A menina não ouvia ninguém, conseguiu levá-la até o quarto e trancou-se com ela. A menina mostrou ao obreiro o demônio do amor no corpo e o seduziu. Adeilton nunca imaginou que uma mulher, ou melhor, que uma menina de quinze anos poderia fazer tudo aquilo que ela fez com ele. Esqueceu os versículos só lembrou dos testículos e se deixou levar pelo demônio, ela o fez enxergar um maravilhoso inferno e não mais voltou. Ficou por lá, fez as malas e partiu num ônibus no final da tarde. Para desespero de Dalva e alegria da endemoniada.
Foram morar em outra cidade. Adeilton era pedreiro de mão cheia, excelente profissional, arrumou logo emprego e dava pra sustentar os caprichos da nova companheira. Chegava cansado apesar de jovem não tinha fôlego pra sustentar os malabarismos da diabinha. Sabia que durante o dia ela fazia suas estripulias. Usava aqueles shortinhos, aquelas blusinhas. Inventou usar também umas minissaias de meio palmo que o deixava louquinho. Aprender a administrar o ciúme. Era o preço pela troca de vida. Também não se sentia culpado, aconteceu e descobriu que não era tão forte assim. Depois quem não consegue salvar a si próprio, não tem capacidade pra salvar o mundo. Preferiu seguir assim, entregue aos caprichos de Melina, a sua diabinha, cultivando labaredas no inferno.

O BURACO

Eu fiz esse buraco. Não foi difícil. Havia disposição, ferramentas novas, cimento antigo, terra fofa. Havia principalmente tempo. Ninguém pediu para que eu fizesse. Foi uma decisão minha. Ninguém estipulou prazo ou modo de fazer. Foi um trabalho tranqüilo. O ritmo foi meu. Constante. Nem houve cansaço. Houve até prazer confesso. E um buraco feito dessa maneira não obedece a um plano predeterminado. Não pensei se poderia encontrar água. Da terra ou aquelas presas em canos. Não encontrei nenhuma das duas tive sorte. O local foi bem escolhido reconheço. Minha única dificuldade foi perceber a hora de parar. Nem sei se parei porque alcancei o que gostaria ou imaginava, ou porque não alcanço mais a abertura. A terra que jogo para fora formou um pequeno monte ao redor e parte dela está voltando em pequenas nuvens que me sujam. Toda vez que cavo as paredes ao redor tremem um pouco provocando a queda de mais terra. Não estou preocupado em sair daqui. Estou preocupado em não poder cavar mais. Eu sempre quis cavar um buraco desses. Surgiu essa oportunidade e não me organizei da melhor maneira. Deveria ter instalado uma roldana para retirar os baldes de terra. Pensei que utilizando pás faria isso com tranqüilidade. Talvez eu pensasse que não chegaria tão longe. Que em determinado momento eu pararia. Por cansaço ou por descobrir a situação ridícula em que eu estava me metendo. Talvez eu quisesse ficar naquela situação mesmo e agora preciso sentar e pensar um pouco.
É estranho o céu visto do fundo de um buraco. Lembra uma luneta sem lente. Quero dizer no caso de um buraco redondo como eu fiz. Alguém disse que a melhor maneira de sair do buraco é parar de cavar. Agora estou pensando na melhor maneira de continuar cavando.