sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Suposições extraídas a partir de uma carta encontrada no paletó de Jose Antonio Ferreira de Lima, doutor engenheiro tragicamente morto num acidente de caça.





JOSE BOTELHO LOPES NETO, ou melhor, CORONEL BOTELHO, assim gostava de ser chamado. Um homem metido a “não me fale muito nesse assunto”, metido a “bofes recheado a ouro”, principalmente no que se referia à sua família, assunto proibido de comentários negativos, claro, havia uma verba pra o colunista social citar invencionices boas sobre a dita cuja, embora toda a cidade soubesse que a família do coronel estava recheada de tudo que o bom costume desaprova: quengas, gatunos, tarados, agiotas, advogados, trambiqueiros e etcetera. Outro dia, por exemplo, convidado que fui pra forrar as tripas na casa do coronel, surpreendi sua esposa, dona Luzimere, pinicando o olho pro meu lado, disfarcei, fiz que não era comigo, porém mais tarde ela enfiou um papel no bolso traseiro da minha calça, cujo conteúdo só tive coragem de ver em casa trancado no banheiro, estava lá no papel, hora e local. Não pensei duas vezes, fui. Fui porque não sou homem de dobrar barra de calça no meio do atoleiro. Quando cheguei puxei logo conversa mas dona Luzimere não queria conversa, partiu logo pro esfolamento das vestes e do corpo. Lu sabia todo o repertório da arte de juntar as moitas e separação de cabeleiras, tudo sobre fornicamento falado, escrito e irradiado. Comi mas não arrotei. Houve uma segunda vez e só, porque o amor é uma doença sexualmente transmissível e ela estava infectada, saía pelos poros, então veio o mais grave sintoma: a escolha entre um caso encoberto e sereno ou a revelação direta ao corno na versão dela, com a conseqüente merda dando no pescoço, juntamente com o meu sangue lavando o escândalo da família Botelho. Decidi pela terceira opção, a terceira opção seria não decidir nada, esperar o tempo cumprir as coisas cumpridas. Num tempo desse o tempo é curto, logo o coronel mandou me chamar, primeiro veio o calafrio depois passou, porque como homem que não dobra a barra da calça no meio do atoleiro, chegou a hora de lavar a barra da calça. Eu era quase vizinho do coronel mas escolhi o caminho mais longo possível, menos por medo, mais para mergulhar no mar de suposições do que Luzimere havia soprado nos aparelhos de escuta do cornudo. Com certeza ele havia aplicado um corretivo na gaieira, um chute na barriga e o aborto com a minha cara, depois o coronel azeita a doze de cano serrado guardada na gaveta da escrivaninha ou o corretivo foi forte demais e a rameira ensangüentada nos braços do coronel sussurra atrelado ao último suspiro a versão do sedutor irresistível e suspiro de morto tem fé de oficio, decreta a minha morte e revoga todas as disposições em contrário.
Cheguei. Estranhamente calmo, o coronel me esperava no alpendre, pôs a mão sobre o meu ombro, levou-me ao escritório. Eu sabia que o coronel não iria agir de uma hora para outra, antes iria argumentar a respeito de traição e adjacências, se é que podemos chamar assim o ocorrido. Sentou-se atrás da escrivaninha cuja gaveta guardava a doze de cano serrado, devidamente azeitada para o consumo humano, sentou-me na cadeira em frente e “Doutor Tonico, vamos direto ao assunto o senhor andou se enxerindo pra minha mulher?”. Chegou a hora de lavar a barra da calça. Neguei, neguei com a cara mais deslavada possível, eu conhecia bem o coronel e ele pensava que me conhecia, acima de tudo estava o meu instinto de sobrevivência e confiava tanto nele que caí na besteira de ir com o meu terno mais caro. O coronel começou a caminhar pela sala, ou melhor, a caminhar por atrás da escrivaninha onde a doze de cano serrado etc e tal. “Doutor Tonico, estou numa situação por demais delicada, meu avô foi amigo do seu avô, meu pai foi meu amigo do seu pai e nós crescemos praticamente juntos, há inclusive o absurdo de conhecer o senhor há mais tempo que a minha própria esposa, apesar do senhor ser doutor engenheiro metido em letras e números, sabe muito bem o que carrega entre as pernas, é homem de peitar touro, de unhar cobra, sei por que meus olhos foram testemunhas e justamente por causa disso sei que o senhor assume os seus fornicamentos, mesmo o referido orifício sendo propriedade particular do coronel Botelho, porém estou aqui na santa paz do meu lar quando chega a minha esposa dizendo que está de queixo caído com as coisas que o senhor andou dizendo pra ela, falando coisas que nem posso repetir aqui, porque o senhor nega e não lhe interessa ouvir essas safadezas, embora suspeito de ser autor dessa façanha de sem-vergonhice e sangue frio, então veja em que situação estou, por que Luzimere ia inventar uma história dessas? Pra encher os meus chifres de ódio e arrebentar suas fuças com uns tiros assim sem mais nem menos? Claro que fosse outro homem o suspeito já estaria devidamente furado, sangrado, enterrado e cuspido mas o suspeito é o senhor e eu me pergunto por que o senhor negaria? Conhecendo o senhor como eu conheço, chamei pra essa conversa aberta, franca, de homem pra homem, pro senhor me ajudar, diga aí seu Tonico, que diabos tá acontecendo?” Do jeito que a prosa se desenrolava fiquei animado, senti que a porta da saída estava próxima, só faltava a instalação da maçaneta, então comecei “Coronel, concordo com tudo que o senhor falou, outra saída não vejo, dona Luzimete, com o devido respeito, está entrada nos quarenta anos, nessa idade, uma doença chamada esclerose que ataca principalmente as mulheres, interfere nos ossos do raciocínio, o juízo manca e cai em situações como essa, se o senhor me permite, aconselho um médico pra dona Luzimere, eu mesmo indicaria, amigo meu da Capital.” Pronto, a maçaneta estava instalada só faltava agora abrir a porta. O coronel chamou Luzimere o grito estrondou a casa toda. Lu surgiu intacta, minhas suposições foram por água abaixo ou o coronel estava ficando velho, raciocinando mais e finalmente aquela porta iria se abrir e a barra da minha calça estaria limpa para sempre. “Luzimete, minha filha, me ajude, doutor Tonico negou tudo, me diga, o que ta acontecendo? Luzimere era boa em fazer uma coisa e em que ela era boa não iria fazer ali com o coronel nem muito menos comigo, óbvio. Mestra dos malabarismos horizontais e um desastre no discurso vertical, ouçam que maravilha “sabe zeca, outro dia eu tava lendo nesses almanaques de moça, que tem uma doença que os homens depois de uma certa idade, chamada clerose ou escleros um nomezinho assim, atua nos ossos do raciocínio, o juízo fica manco e tropeça em besteiras como as que o doutor Tonico andou dizendo pra mim, comento isso contigo porque você como amigo dele, aconselhar um doutor médico pra evitar esses mal-entendidos da vida” Não gostei, quase as mesmas palavras, via a maçaneta a porta e a saída sumindo no ar, o coronel assumiu o ar das minha suposições, parou de caminhar de um lado para o outro, estacionou bem em frente àquela gaveta onde a doze de cano serrado etc. “Bem que eu tava matutando aqui comigo, até as palavras são as mesmas, concordo com a minha cornice não tenho mais carvão pra acompanhar o fogo dessa catraia mas não me conformo que confundam isso com burrice, ainda dei chance pras quizilas falar, a raiz do chifre ainda não esmigalhou meu juízo, melhor remédio pra esclerose clerose ou escleros ou que porra for é bala!”O coronel falou isso bem rápido e enquanto falava abria aquela gaveta onde a doze de cano serrado, devidamente azeitada, carregada e engatilhada deu o ar da sua graça, a última coisa que ouvi foi o barulho do meu peito se espalhando pelo ar, o que aconteceu com Luzimere não sei não quero saber e não está mais aqui quem falou.

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