quarta-feira, 13 de outubro de 2010

TRANSFERÊNCIA

Bebeu o beijo de um só gole. Tinha pouco tempo. Sabia que não o veria nunca mais. Não havia mais esperança. Preferiu trocar o carinho por uma descida lenta pela escada. Cinco lances largos sabendo à detergente. Usou aquele momento para lembrar de tudo que havia acontecido entre eles. As lembranças eram maiores que o tempo da descida. O carro estava esperando em frente ao hospital. Entrou rápido.
- Para onde vamos, capitão?
- Para o aeroporto.
- Sim senhor.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

PARTO DE SOPA

Há vinte anos não jantava com o meu pai. Os objetos postos, pratos, talheres, a fumaça da sopa, o vazio das xícaras. Ele tem a saúde que a idade permite, e os respectivos remédios. Tem a fome necessária e os cuidados da saciedade. É um homem altivo, ativo, autônomo, vende idéias pra quem precisa, para quem não precisa ele cobra o dobro. Ele nunca me forneceu uma idéia diretamente. Eu preciso prestar muita atenção. Às vezes um gesto vem com uma idéia embutida que pode modificar todo um planejamento ou gerar outro. Embora poucas vezes eu tenha ficado assim a sós com ele como estou nesse momento. Quatro vezes que eu me lembre. Quatro idéias. Ele não tocou no assunto do meu divórcio, talvez porque eu não tenha tocado quando da sua viuvez. A diferença é que a pensão ficou pra ele. Antigamente ele tomava a sopa quente com um pãozinho comum, agora espera esfriar e come pão de centeio, café com adoçante e o sal fica ao lado do meu prato, eu ainda posso salgar as coisas. Lembrei do episódio da cacimba no quintal. Eu segurei na corda e fui até o fundo e lá embaixo a corda arrebentou. Foi a primeira vez que eu gritei pelo meu pai. Ele não estava em casa e eu sabia, mas só conseguia chamar por ele. Agora as bordas do prato convidativas, apesar da sopa quente, fiz uma corda de sal e desci até o fundo do prato. Esbarrei nos pedaços da batata, da cebola, coentro, fragmentos de macarrão, eu nunca aprendi a nadar. Ergui os braços consegui agarrar num osso e gritei para que o meu pai me salvasse. Foi quando ele revelou que estava em casa durante o episódio da cacimba. Ouviu meus gritos, mas não acreditou, achou que fosse uma brincadeira de criança e naquele momento me vendo mergulhado no prato de sopa e sabendo ser um reflexo dessa lembrança, não acha que deva se meter nisso, provavelmente outra brincadeira, dessa vez uma brincadeira de adulto. E o prato nem é tão fundo assim, não há paredes escorregadias, a borda é rasa, acha que com um pouco de esforço eu vou conseguir me sair dessa sem que ele precise interferir. Concordo com quase tudo que ele disse, porém a sopa está quente e acho que ele desconhece o cheiro de um corpo quando está sendo cozinhado. Um homem com tantas idéias e não sabe proceder quando as coisas são tão simples. Mergulhei me misturei aos temperos e fugi do prato em forma de fumaça.