segunda-feira, 8 de março de 2010

CARA COROA

Em poucos momentos da minha vida pensei em meu marido. Passam-se as horas os dias e nunca penso nele. Aliás, ele nunca me deu motivo pra pensar nele. Agora aconteceu a necessidade de pensar. Na sua barriga, no seu cheiro azedo de suor que não sai nunca, na boca pobre e podre de palavras e dentes, no seu chulé, na sovaqueira, no banho que não modifica nada, nas mãos indelicadas, no gozo solitário dele. Ele não era assim e não fui eu quem o transformei. A vida vai passando e os corpos e os olhos vão se acomodando e o melhor remédio para não perceber é deixar de pensar o que o tempo faz com o corpo que, em algum momento, declaramos amar. De repente aquele desconhecido na minha frente, me fez pensar no meu marido, era preciso comparar aquilo em casa com esse homem alto, não muito bonito, sem barriga, perfumado, dentes de verdade, talvez cinqüenta anos, bem vestido, num carro preto lindo, dizendo que me leva para onde eu quiser, mas nós dois sabendo que ele iria me levar para onde ele quisesse, se eu dissesse que ia pro céu ele iria comigo, foi nesse momento em que pensei no meu marido, no inferno em que eu vivia, pensei duas, três vezes e mais tantas vezes e em todas as respostas sempre era sim, sim e eu fui pra onde ele queria. Na entrada uma cachoeira e as alamedas repletas de flores e verde e mais água corrente, a garagem que se abre e depois se fecha atrás de nós. Escadas de mármore, luzes escondidas, um momento repleto de espelhos, eu me senti uma rainha, muitas rainhas me olhando, não quer tomar um banho? Claro. Fechei a porta sem perceber que as paredes do banheiro eram de vidro, eu flutuava entre o vidro e a água. Saí enrolada na toalha e o encontrei sem camisa e com duas taças de champanhe. Não obrigada, não bebo. Pra comemorar, só um gole. Resolvi imitá-lo virando a taça de uma vez e acordei aqui.

Eu sinto como se um trem tivesse entrado por dentro de mim, procurando trilhos e estações e com esse movimento tivesse rompido todos os meus sentidos e sentimentos. Eu não sabia como o meu corpo estava ou se estava. Ouvi a voz do meu marido. Como foi isso minha filha? Quem ia fazer isso com uma pessoa tão boa? Quem mundo é esse? Eu não conseguia falar, se eu pudesse diria, pois é encontrei um desconhecido na rua, foi quando comecei a pensar em você.

O COMPANHEIRO ESMAGADO PELO SENTIMENTO

Aconteceu durante o banho. Os orifícios do chuveiro se dilataram e as coisas começaram a cair juntamente com a água. Automóveis, pessoas, outros objetos, sentimentos, todos misturados caindo sobre a minha cabeça e escorrendo pelo meu corpo. O ralo permaneceu imutável. A água escorria enquanto as outras coisas iam se acumulando ao meu redor e atrapalhavam os meus movimentos. Ouvi o companheiro bater à porta e toda aquela movimentação não me permitia abri-la. Era nosso costume não travar a porta do banheiro exceto em caso de masturbação ou um choro que o outro não deveria saber. Perguntou se eu estava soluçando depois se eu estava gozando. Na verdade eu não ia chorar nem me masturbar. O travamento inconsciente estava relacionado com aquelas coisas caindo sobre mim. O barulho permitia essa dúvida. Eu não sabia o que responder. As coisas foram se acumulando tolhendo os meus movimentos até a paralisação total. Mesmo com meu corpo imóvel as coisas continuaram caindo até o soterramento completo. Tudo ficou escuro. Ouvi o vidro do boxe arrebentando e isso pouco alterou na movimentação do meu corpo. Estranhamente minha respiração não foi alterada. Algum ar entrava por algum caminho que ficou aberto. Com o preenchimento completo do espaço por tudo que havia caído, o chuveiro foi obstruído e nada mais entrava. Esperei que a janela do banheiro não agüentasse a pressão e arrebentasse. Não demorou muito a janela começou a expelir pequenos objetos que permitiu alguma movimentação do meu corpo. Consegui alcançar a porta mas os poucos objetos que saíram ainda não permitiam a abertura da porta. Gritei para o companheiro do outro lado para que arrombasse a porta com um machado ou um pé de cabra e tivesse cuidado porque coisas iriam cair em cima dele. Momentos depois vi a ponta do pé de cabra começar a forçar a porta. Logo depois a porta se abriu e fui jogado juntamente com as outras coisas corredor a fora. Com a movimentação a torneira voltou a jorrar outras coisas e fomos empurrados pela sala em direção à varanda e caímos junto com tudo do quarto andar. Num último esforço ainda consegui tocar numa das mãos do companheiro. Depois fomos separados. Ele não conseguiu sobreviver os sentimentos caíram sobre ele. Eu estou aqui no hospital repetindo essa história há meses e os médicos não acreditam. A polícia não acredita. Recorro ao leitor minha ultima esperança. Vocês acreditam?