segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O TOCO

Beroaldo chegou com dois mapas de sangue nas mãos, numa alguns caminhos, noutra atalhos. Eu preferi ficar e lavei com águas impossíveis os dados apresentados. Beroaldo queria guardar, desenrolar e fixar em molduras, era tarde, o ralo bebeu as coisas líquidas e arrotou azinhavre.
Onde aqueles desenhos perguntei. Falou de Altamiro distraído podando árvores, folhas, galhos, parte do tronco, ficou o toco quando deu por si. Prestava atenção àquela distração e guardou a sombra com muito cuidado devido aos espinhos que a sombra guarda pra se fixar nas coisas. Do bolso desdobrou a sombra e a esticou no varal com a minha ajuda e luvas pra evitar novos mapas. Não deu pra guardar passarinhos, folhas, lagartos, sagüins, flores, frutas, era mais difícil segurar a sombra, priorizou.
Vesti duas calças e cinco camisas, o vento puxava minha pele naqueles dias, apesar do verão, fomos ao local permitir escolhas, angariar preenchimento dos vazios, um metro e vinte e sete centímetros senti com os olhos, da terra batida até onde os dentes de Altamiro mascaram. Hora do almoço e forramos a toalha das promessas sobre o toco. Trocamos fomes conversadas, águas, migalhas de um medo devastado. Altamiro àquela hora noutro lugar, longe da distração, atento ao mundo que lhe abraça sem nenhum carinho. Nem pensava naquela situação porque estava sozinho.
Perguntei como fazer pra retirar o toco. Beroaldo não entendeu tirar o toco como única opção. Queria outras coisas, enfeite, monte de madeira, interrupção de caminhada, hiato de caminhante distraído, tinha razão. Pensei curto e sem os olhos. Fome de resolver coisas sem pensamentos largos. Almino, observador do ócio, sem cabeça porque com ela poderia voar, sem corpo porque com ele poderia agüentar, sugeriu o refazimento do improvável porque era da sua lide o aparente improvável. Juntei os desocupados possíveis, aglomerados uns sobre os outros, formamos o tronco, os galhos, assanhamos os cabelos como folhas. Menos eu porque quando quis mostrar o rosto para a terra perdi os cabelos, pintei o que sobrou de verde e me pus no lugar mais alto, ocupamos o espaço falso criado, fotossintetizamos nossa solidariedade e abraçamos os seres necessários.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

AS FORMAS DO SILÊNCIO

Rúbia entrou no quarto com o facão escondido sob a blusa. Fechou a porta e retirou a chave. Vi todo o movimento, mas fingi estar dormindo. Sempre em decúbito lateral direito eu deitava virado para ela, observava seus cabelos negros sobre a pele ressecada pelo sol e sentia o seu hálito quente no meu rosto. Naquela noite escolhi o decúbito lateral esquerdo, dei as costas para ela e esperei os golpes. O primeiro veio na altura do pescoço, o segundo no rim, o terceiro nas costas, Rúbia era forte e rápida, cortadora de cana, acostumada com essas coisas rudes.
Existem duas maneiras de ficar em silêncio.
A minha preferida é ficar em silêncio falando.
Consiste em não falar coisa com coisa, de preferência com um interlocutor que, obviamente, não quer o seu silêncio de maneira alguma, e aceita qualquer assunto que for tocado.
Por exemplo, falei num determinado momento a respeito da sombra que a porta provoca dentro da casa.
Ela disse que quem provoca a sombra dentro de uma casa é o teto.
Se a casa tiver teto, respondi.
Toda casa tem teto, aliás, teto é sinônimo de casa, sabia?
Conheço gente que mora em casa sem teto, sem paredes e sem cômodos.
Se não tem paredes nem teto, como fica a história da porta fazendo sombra?
Explico, quando num piso qualquer, com a ajuda de um pedaço de pau ou de um giz, riscamos o desenho de uma casa, fazemos o contorno e as divisões dos cômodos, e mostramos esse desenho pra alguém, o primeiro olhar vai para a porta de entrada, perguntam logo, como entramos na casa?
E daí?
Daí a sombra da porta se sobrepõe sobre todo o restante da casa.
Então você fala não da sombra sob a luz que se forma, e sim da sombra metafórica da porta que se abre para a casa.
Na verdade eu falava a respeito da sombra que se forma sob a luz, eu ainda não havia pensado dessa maneira que você mencionou, mas gostei disso.
Noutro momento falei a respeito das cores das folhas, defendi a idéia de que todas as folhas tem a mesma cor.
Impossível, respondeu de imediato. Basta comparar uma folha com outra e essa idéia estará liquidada.
Tem certeza?
Tenho.
Eu estava tranqüilo, não havia folhas nas nossas árvores. Encontrei folhas de papel e pintei uma verde clara e outra verde escura.
Assim é muito fácil. E as folhas que não são verdes, onde entram nessa sua teoria?
As folhas que não são verdes, simplesmente não são folhas. São falhas. Entendeu?
Nada que é da natureza pode ser considerada falha. Tudo tem um motivo e uma razão de ser. Essa sua idéia está completamente furada.
Quando eu consegui guardar a saliva suficiente pra regar meu sonho, vou deixar um espaço para que as folhas escapem desse momento e vou mostrar a você como funcionam as cores e as conseqüências.
Então trate de dormir logo. Esse sonho ainda vai demorar muito.
Noutro momento falei a respeito do homem que preferia o silêncio sem falar. Ela queria saber como isso era possível. Então calei. Fiquei alguns dias sem deixar que a contestação a alimentasse. Ela não suportou.
O silêncio sem falar é o mesmo da morte, não há como dividir as palavras que não são mencionadas. Não ofereci a ela nem um grito enquanto o facão me atravessava.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

JOGOS DE ARMAR

JOGOS DE ARMAR


Como você conseguiu fazer isso?
Elas sempre me perguntavam isso e eu nunca respondia. Perguntem-se pelo azul do céu. Por que o cinza das nuvens interrompe a cor para nos trazer a chuva, tornando a grama mais verde. Os homens deveriam aproveitar esse momento deitar-se na grama e receber a chuva tornando-se mais verdes e viçosos. No entanto eles abrem guarda-chuvas ou se abrigam, um despautério. Perguntem-se como os lutadores devem agir diante do adversário. Os que são melhores na defesa esperam o golpe, esquivam-se e partem para o contra-ataque fatal ou os que são melhores no ataque, desferem seus golpes certeiros, apesar de saber do contragolpe e treinam o suficiente para absorvê-lo. Os lutadores agem conforme o adversário e administram a luta conforme as necessidades do embate. Então me perguntam como consegui fazer isso e eu jamais responderei.
Gostaria que você tomasse cuidado comigo, ainda sou virgem.
Eu ia responder dizendo que era de capricórnio para tornar o ambiente mais ameno, mas eu não queria isso, queria o ambiente pesado, tenso, teso. Respondi perguntando por que eu deveria ter cuidado com ela. As pessoas querem que tenhamos cuidado com elas, cuidado em qual sentido? Pergunto-me. Cuidado pelo o que elas podem fazer conosco ou pelo que podemos fazer por elas? Que cuidado é esse? Até que ponto somos responsáveis pelo outro? Uma mãe gera uma criança no seu ventre e depois que a expele precisa tomar conta daquele corpo pelo resto da vida, tomar conta do corpo e dos anexos, seus desejos, vontades, necessidades e tudo o mais que compõe o que chamam de ser humano. Essa responsabilidade é contraditoriamente desumana. Você cria a necessidade de disponibilizar o seu corpo mutuamente com o outro que escolheu pra viver o resto da vida. Por que preciso tomar cuidado com o outro? Devo tomar cuidado comigo mesmo, não sei o que vou pensar daqui a alguns minutos. Quero dizer que sei muito bem o que vou fazer, mas ainda não sei o que vou pensar. Pensar e fazer não estão diretamente relacionados.
Você quer fazer como? Perguntei. Ela afastou um pouco a cortina, observou o jardim. Voltou-se em direção a cama depositando a bolsa sobre o criado-mudo. Voltou para a janela abriu novamente a cortina.
Ainda não sei. Respondeu finalmente.
Quem diz que não sabe o que quer sabe pelo menos muito bem o que quer dizer com isso. Quer que o outro saiba por ela e tome os direcionamentos necessários para realizar o que de fato ela quer. Principalmente na situação em que estávamos. Eu estava encostado na porta, virei a chave e guardei no bolso da calça sem que ela percebesse. Desabotoei a camisa lentamente. Aquela conversa não estava me excitando, se demorasse muito talvez me desse até enjôo.
Então vai ficar por minha conta? Perguntei já tirando a camisa e pendurando no cabide. Ela voltou-se e viu o meu peito. Notei seu ar de espanto. Fiz de propósito, isso sempre funcionava. Sentou-se na cama e não tirou mais os olhos de mim. Isso sim começou a me excitar.
Inacreditável. Ela disse sorrindo passando as mãos nos cabelos. Sinal visível de nervosismo.
As pessoas acreditam em coisas que nunca viram. Outras elas vêem e repetem aquela frase ridícula do inacreditável. Está ali na sua frente e elas dizem que não conseguem acreditar. No entanto nunca viram Deus e acham que ele tá lá em cima tomando conta disso aqui. Isso sim pra mim é inacreditável. Quando faço uma coisa faço bem feita, procuro o máximo de perfeição. Não deixo margem para questionamentos de quem quer que seja principalmente a própria coisa feita se questionar. Imagine eu criar o homem e plantar nele a sementinha do livre arbítrio, um cara com os atributos de Deus jamais faria uma burrice dessas. A mistificação da estupidez. Acredite no que você vê no que você toca. No que você sente é mais complicado. Como você vai saber se o que está sentindo é realmente o que está sentindo? Como descrever o amor ou o ódio? Você vai ter que recorrer a palavras e aí meu amigo, palavras certas para o lugar certo é o grande problema. E a palavra certa no lugar certo raramente encontra o leitor ideal. Ou o leitor ideal não está propenso a entender o que a palavra certa quer dizer. Você também pode recorrer a gestos para demonstrar o que está sentindo e vamos incorrer em situações mais complicadas. Um gesto de ódio vai gerar agressão, um gesto de amor um carinho, vamos fatalmente convergir para aquele papo da Física da ação que corresponde a uma reação de efeito contrário, mas sentimentos estão fora da Física, uma agressão pode gerar revide ou fuga, um carinho pode gerar outro ou fuga ou uma agressão, mais uma vez vamos depender do outro. Inacreditável é o outro.
Tirei os sapatos e as meias e joguei ao lado. Comecei a desabotoar e fui caminhando em direção à cama. Fiquei de costas e desci a calça lentamente. Eu nunca usei cuecas. O maravilhoso traseiro se apresentou aos seus olhos. Observei pelo espelho a sua reação. Joguei a calça longe. Mantive as pernas um pouco abertas.
E agora? O que faço? Perguntou ela. Ainda não sabia o que queria. Mas sabia o que eu deveria fazer considerando tudo que ela falou. Quase nada. Mas suficiente para as minhas conclusões. Virei lentamente. Apresentei meu sexo quase colado ao seu rosto.
Mas como isso é possível?
Algumas pessoas passam a vida toda fazendo perguntas. Algumas elas sabem que não existem respostas. Perguntam para provocar o espanto no outro. Algumas perguntas têm respostas, mas elas não têm coragem de procurar e esperam que o outro passe por essa situação de mostrar que a resposta era aquela ou no meio do caminho desviar e dar quase a resposta correta ou desviar e desembocar no maravilhoso mundo da mentira da fantasia e da viagem por caminhos que só as perguntas podem nos levar. Aquela pessoa não fez outra coisa além de perguntar. Eu não tinha as respostas que ela queria. Ela estava nervosa. Não sei exatamente o que falaram a meu respeito, mas eu não faria com ela o que fiz com as outras. Eu nunca repito o que faço. Se ela está esperando as coisas que eu fiz com a amiga que me indicou está muito enganada. A pista para os meus procedimentos ela deu. Era virgem. Queria que eu tomasse cuidado com ela. Isso significa que não devo tomar cuidado algum e que ela quer ser estuprada e é isso que ela vai ter.
O que falaram a meu respeito? Perguntei talvez por curiosidade talvez para que ela dissesse alguma coisa diferente de uma pergunta.
Falaram que você é terrível. Que é um cara violento. Que é um fenômeno da natureza, um incrível fenômeno da natureza. Está aqui bem na minha frente esse corpo másculo maravilhoso, essas pernas, coxas, barriga, braços, peito e essa incrível e inesperada buceta no meio das pernas. Eu me pergunto como você conseguiu fazer isso?
Sempre a pergunta. Peguei sua mão direita e dirigi em direção à minha gigantesca buceta depilada, ela sentiu o clitóris se expandindo como a língua do céu se desenrola. Lento e azulado. Dei um passo para trás e desferi o soco na ponta do queixo o suficiente para que ela desmaiasse. Perfeito. Era o tipo que não se deixaria amarrar livremente. Presos os braços e as pernas, tirei suas roupas e esperei que ela acordasse. A mordaça impediria aquelas malditas perguntas.
Ver aquele corpo inerte e à mercê me fez lembrar de coisas que eu pensava ter esquecido e que vieram junto com um sentimento que não consigo descrever. Lembranças da vida toda que, dizem, sempre acontece antes de alguém morrer, mas eu não estava morrendo, ao contrário, estava com uma vida em minhas mãos e poderia dispô-la do jeito que eu bem entendesse. Divago. O assassinato não faz parte do contrato. O que ela me ofereceu para trabalhar foi a preservação de uma virgindade e a impossibilidade de machucá-la. Abro a maleta. Bisturis, afastadores, serras, martelo, chaves de fenda, facas, pênis siliconado de vinte e cinco centímetros, outro de vinte centímetros, lubrificantes, outros pequenos utensílios que não vale a pena mencionar aqui. Sinto a falta de alguma coisa, depois vou me lembrar. Retiro o pênis de vinte e cinco centímetros, encaixo no cinto e amarro na cintura. Ela está demorando muito a acordar. Talvez estivesse cansada. Lembrei dos gerânios no jardim, precisam de luz e de duas a três regas por semana, cuidados para não borrifar as folhas, gostam de ambientes secos, evitar empoçar água para não prejudicar a raiz. Gosto de gerânios, de azaléias, de gardênias, gosto da maioria das flores. Ninguém precisa ensinar uma flor a voltar, elas voltam sozinhas. Lembrei do que estava faltando na maleta, o gerânio seco que guardo num dos bolsos laterais, vou colher outro e substituir. Ela ainda não acordou, vou fazê-la cheirar amoníaco. Mesmo quando podamos uma flor, ela não precisa que ninguém a ensine a voltar, ela sabe voltar, o mesmo não acontece com os humanos, precisamos tomar muito cuidado na hora do corte, sangue não sabe voltar.

ENTRADAS E BANDEIRAS

ENTRADAS E BANDEIRAS


Pelas minhas contas seria o quinto. Cinco pessoas levaram a minha história e não entregaram à pessoa certa. O mesmo enredo em cinco versões diferentes e não consegui sensibilizar ninguém. Uma coisa é a história na cabeça a outra é a narrativa, se for falada então, talvez até complique. A história no papel nos dá a possibilidade de correção, de acertos, de supressão e acréscimos, coisa que a narrativa oral não nos permite, apesar do auxilio do gesto, da entonação da voz, mas as pessoas guardam apenas as imagens que formam nas suas cabeças. No jaleco do doutor estava escrito Residente do Hospital Geral do Recife, mandaram um novato residente, os antigos não me agüentavam mais. Com a alternância de surtos, lucidez, medicamentos, passeios pelo pátio, conversas com outros eternos internos, e outras atividades que eles criam e chamam de terapia ocupacional, eu nunca sabia com certeza quando estava lúcido ou surtado. Quero dizer surtado na concepção deles. O médico era jovem. Eu o aconselhei seguir a Neurologia, dava mais dinheiro, li num artigo da revista médica. Ele sorriu, quando eles não têm nenhuma resposta ou a resposta vai provocar algum desconforto, eles sempre sorriem. A janela do consultório era larga, o pátio ao fundo repleto de árvores, estava inclinada, levantei e aprumei a janela de acordo com a minha vontade, o médico acompanhou a inclinação e os seus óculos saíram um pouco do lugar. Retornei à minha cadeira, enquanto deixei o corpo ainda lá fora respirando a paisagem. Sou motorista de táxi. Meu táxi não tem rumo como todos os outros, quem estipula o rumo é o passageiro. A única coisa que necessito para o meu táxi é o combustível, o resto completo com o meu corpo. Ele está lá fora nesse momento, mas quando os fatos ocorreram, estávamos todos juntos, o táxi, eu, meu corpo, os passageiros, o caminho e o indispensável combustível. Na Avenida Boa Viagem, três jovens de vinte e poucos anos, talvez um pouco mais, no banco traseiro, era sábado e a praia prendia outros jovens, pelos pés, pelos cabelos, pelo sal, para fincarem bases na praia, e os três ali bem vestidos no banco traseiro. Perfumes caros, maresia e desconfiança impregnaram o interior do veiculo. O destino era aqui, Hospital Psiquiátrico do Recife, Rua do Padre Inglês. Dois bem claros e o do meio avermelhado talvez por estar imprensado entre os outros dois, talvez por estar amordaçado e amarrado. Certa vez fui amordaçado, um ritual que criei em busca de uma rima, outras pessoas não entenderam e me fizeram perguntas cujas respostas eu sabia mas não poderia pronunciar. Foi uma das piores torturas que já passei em toda a minha vida, o rapaz forçava as palavras na mordaça e elas molhavam e escorriam pelo canto da boca. Aquilo estava me deixando nervoso. Pedi para que retirassem a mordaça, no que fui rechaçado imediatamente. Forcei os caminhos da velocidade da minha luz, e cheguei a tempo de não me exceder. No estacionamento o carro parado as quatro portas abertas e pernas e braços e socos e pontapés para retirar o rapaz do meio. Assuntos de família não me meto, mas a mordaça me tornou irmão de um daqueles e os meus braços penetraram na situação, qual um fórceps, mas não consegui retirar o que era preciso dali, ao contrário, fui incluído como se fosse parte do problema e os três me amarraram me amordaçaram e me internaram. Meu táxi tem um dispositivo que o torna alado após alguns meses de inatividade. Não sei quantos meses já sofri aqui ou permaneci acordado, depois dê uma olhada no meu táxi voando ou ainda estacionado lá fora, vai depender da quantidade de meses, não sei. O número da placa, a cor, os adesivos, aqui estão. O residente é jovem, curioso, tenho certeza que vai procurar e entender tudo. Vai encontrar estacionado o carro com as características que falei, a mesma cor, a mesma placa. Num Hospício separam os internos por alas de acordo com o nível de lucidez, por este motivo, algumas narrativas parecidas provocam rachaduras no entendimento médico. Três motoristas contam a mesma história e os três automóveis estão lá fora abandonados. O residente entende que a culpa os obriga a liberá-los e a observar com mais cuidado os três rapazes de Boa Viagem que, estranhamente, não gostam de sol e que de vez em quando, desviam cidadãos para o abismo da loucura. Minha narrativa dessa vez encontrou o ouvinte certo. Recebi alta juntamente com meus dois companheiros. Meu corpo misturado ao pátio nunca mais, nem idéias turvas, vontades magoadas, felizmente encontrei dois companheiros com boa memória, repetiram incessantemente, a historia que nos deu a liberdade. A janela do pátio nos mostrava os automóveis que nos inspiraram essa idéia, a ingenuidade da juventude nos salvou. Respiramos um ar diferente depois do muro do Hospício, um ar sem remédios, sem remendos, agora precisamos aprender a procurar novos surtos.