Acontece
assim, você está observando a sua comida e, de repente, seus olhos caem dentro
do prato e você nem percebe e continua mastigando e sente aquele gosto mais
amargo do que doce, sem nem saber que o amargo é parte do olho que está sendo
mastigado, sem perceber que é mais amargo do que doce o que os olhos enxergam e
você continua mastigando e engolindo porque já passa um pouco da hora do almoço
e é preciso mandar a comidinha para dentro e você continua mastigando e só dá
por falta dos olhos quando vai se olhar no espelho e percebe o buraco na sua
cara e vai ficar se perguntando onde diabos perdeu os olhos como pode ter
acontecido isso e tal, aquele medo aquela angústia bem estranha para aquele
momento como naquele dia em que alguém chamado Clariceflórido, isso mesmo,
Clariceflórido baixou um pouco a vista para ver quem estava ligando para ele no
celular e viu a foto da irmã que quase nunca ligava e geralmente ele não atende
ninguém quando está dirigindo seu automóvel automático importado comprado em
sessenta suaves prestações mesmo com a entrega do automóvel anterior como
entrada, aquela irmã só ligava para dar notícias sérias e ele abaixou um pouco
mais a cabeça para apertar o botão que permite falar em voz alta ou o que
chamam de viva voz, como se toda a voz não fosse viva, e esse intervalo de
atenção no qual ele baixou a cabeça foi o suficiente para o sinal fechar, mas
ele não percebeu e cruzou a avenida central, aquela em que pesados caminhões
trafegam carregados de contêineres e outras mercadorias até mais pesadas e às
vezes mais leves e um desses caminhões, um de outras mercadorias, bateu bem no
meio do veículo de Clariceflórido que tomou um grande susto, mas com pouco
prejuízo físico uma vez que o caminhão estava em marcha lenta justamente por
estar saindo de uma via onde o sinal acabara de ficar verde e provocou o
acidente que, apesar do enorme barulho, não trouxe grandes conseqüências. Clariceflórido desceu do seu veículo um pouco
assustado e sem saber que estava tonto porque pensava que a rua estava girando
por conta do grande movimento, deu alguns passos na avenida central e você sabe
como é a avenida central com todos aqueles caminhões carregando contêineres e
outras mercadorias e um deles bateu bem no meio de Clariceflórido que voou
pelos ares igual aos olhos quando são mastigados em alguma boca distraída ou
voou como voam as ligações que fazemos entre telefones celulares, no caso, a
ligação da irmã que ficou esperando ele atender e aquela demora a irritou muito
que o xingou disso e aquilo outro, Florenciclárida, sim esse é o nome dela,
Florenciclárida queria comunicar ao irmão as drásticas mudanças ocorridas na
empresa da família, ele estava voltando de uma viagem ao interior enquanto
outros sócios solicitaram uma reunião emergencial para tratar de um assunto que
ela classificou de insólito, tanto pela sua originalidade como os
desdobramentos possíveis, tratava-se do sócio fundador, que raramente saia para
almoçar e pedia o almoço no escritório, o restaurante também não era um
restaurante qualquer que fornecia o almoço para o sócio fundador, José João ou
seu zezão como era conhecido, costumava almoçar entre treze e treze e trinta
mais ou menos, comida pouca e rápida, mas saudável e após o almoço ia para o
banheiro que ficava dentro da sua imensa sala e se deparou com dois buracos no
local onde havia os olhos, procurou pelo banheiro e na sua imensa sala e graças
a alguns cílios no cantinho do prato, até porque os cílios de seu zezão são
longos e grisalhos, como os poucos cabelos que ainda restavam na sua cabeleira
rara, constatou que havia mastigado os olhos e percebeu que o sabor era mais
amargo do que doce, seu zezão convocou uma reunião extraordinária para decidir
o que fazer depois daquele acontecimento e, mais grave, queria entender como
ele enxergava no espelho os buracos dos olhos, já que não havia mais olhos por
onde enxergar. Florenciclárida ligou para Clariceflórido, seu irmão, para
comunicar o acontecimento, mas o filho da mãe não atendia a ligação