quarta-feira, 30 de setembro de 2009

ROTINA DE RISCOS

a partir de uma idéia de Raimundo Carrero


Entraram no botequim para um café. Inimigos, não se falavam desde a infância. Sentavam-se ali todas as tardes e ficavam horas em silêncio. Um servia café ao outro, mesmo correndo perigo.Desconfiavam de uma dose fatal de veneno. Mas não compreendiam a vida sem esse risco. Inimigos a céu aberto, aqueles que desconhecemos os gestos mas podemos evitar, diferente dos inimigos ocultos, cujos gestos sabemos por isso mesmo evitamos. A rotina de riscos os obrigava a esperar o primeiro gole do outro ou fingir o primeiro gole. O ódio acentuava a velhice e aumentava a senilidade. Às vezes o desejo ficava remoendo a cabeça como se fosse uma atitude já tomada. Na tarde seguinte o outro não veio, nem nas outras tardes. E nos dias seguintes sob a sombra da dúvida, refez na cabeça quando pôs a mão no bolso e derramou o veneno. A intenção e o gesto o jogaram no perigoso terreno do conflito e de lá até o abismo do remorso foi questão de segundos. Não conseguia mais tomar café sem a possibilidade do risco nem entrar no botequim sem a possibilidade de encontrar o inimigo. A dúvida o definhou até a morte e com a certeza de que ao envenenar o inimigo havia envenenado a si próprio.
Entrou no botequim. Soubera do inimigo que definhara com a sua ausência e que morrera pensando no seu possível envenenamento. Nunca precisou carregar o frasco de veneno no bolso. Descobrira que provocar a incerteza no outro teria um efeito mais letal. Pediu um café.

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