segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O dia em que lelé dacucou





Primeiro veio o tronco depois os braços as pernas o cordão ligado à placenta. Os médicos esperaram pela cabeça esperaram esperaram meteram a mão lá dentro e reviraram botaram a mãe pelo avesso e não encontraram a cabeça da menina.
Trataram de arrumar a mãe. Limpa de lá limpa de cá. Estavam assim distraídos quando a enfermeira notou que o coração da menina batia e ela também respirava. Todos se voltaram para a criança. Realmente ela estava viva mexia os braços as perninhas respirava e o coração batia. A mãe recebeu alta mas a criança ficou em observação. permaneceu viva no segundo dia no terceiro quarto semanas meses. Aos dois anos recebeu alta e foi pra casa.
Mãe: é a cara da mãe?
Pai: é a cara do pai?
Mãe e pai: esperta essa menina nasceu sem parecer com nada nem ninguém, linda por isso!
As crianças do bairro resolveram chamá-la de lelé. A mãe gostou o pai gostou e registrou. Na hora do batizado o padre quase perdeu a cabeça procurando a cabeça da menina, em compensação ela não chorou como as outras.
Teve uma infância normal como todas as outras crianças da sua idade, pulava corria e brincava de boneca com as amiguinhas.
Lelé: tão bom ter nascido numa obra de ficção, mesmo sem cabeça eu ouço eu falo eu penso, só não vejo por causa do desfecho oficial.
Nas adolescência lelé ficou com um corpo bonito torneado nos lugares certos, ouviu algo sobre pentear cabelos e mirar-se no espelho, pensou pensou imaginou mas não chegou à conclusão alguma a respeito. Perguntou à mãe mas a mãe desperguntou porque mãe.
Certo dia lelé ficou em frente ao espelho e não se viu. Passou as mãos na cabeça e não sentiu. Procurou na bolsa no bolso e nada. Sentiu um vazio sobre o pescoço. Sentiu um vazio e resolver preencher o cartão resposta do vestibular. Preencheu tudo certinho e saiu na lista. Procurou na faculdade a razão da sua acefalia. E haja braile haja braile. Livros manuais compêndios almanaques enciclopédias. Alemão inglês francês espanhol. Phd e a possibilidade e um transplante de cabeças e segundos os cálculos a única que poderia doar sem o risco da rejeição seria a sua própria mãe. Porém com um porém a mãe não poderia ceder a cabeça de livre e espontânea vontade nem negá-la nem muito menos saber da doação – um problema de ordem técnica fora da alçada literária que não cabe aqui ser exposto – da alçada literária são os possíveis desfechos.

Versão oficial: lelé conta a mãe que se tornou uma famosa ilusionista internacional, explica o truque da guilhotina e a convence a ser a cobaia do número. A mãe aceita com um sorriso nos lábios. Cabeça no lugar. Lelé retira o truque do mecanismo da guilhotina e põe uma legítima lâmina de aço inoxidável e solta a trava. Cabeça da mãe na bacia. A equipe medica camuflada na platéia sobe ao palco e começa a operação. Anestesia porcas parafusos unindo a cabeça ao corpo de lelé.
Abriu os olhos. A primeira visão do mundo: o corpo da mãe deitado no sofá e coberto por jornais. Depois a janela. As janelas estradas paises pessoas. A ultima visão do mundo.
Mãe: não fico triste porque você me degolou se você está feliz eu também fico feliz com isso.
Lelé: por favor acaba com isso de autoflagelação materna. Degolei você inutilmente e você sabe disso. Pra ser feliz não é preciso ver o mundo. Basta apenas estar no mundo e sentir o amor presente nas pessoas que nos rodeiam estou arrependida e peço licença pra chorar pelos seus olhos.
Mãe: é melhor estar no mundo vendo tudo. Você se arrepende não por ter me degolado mas pelas coisas que você viu.
Lelé dacucou. Se arrependimento matasse ela teria morrido mas preferiu enlouquecer.
“TODO CONHECIMENTO DO MUNDO AQUI APRISIONADO” era a placa no seu quarto do hospital psiquiátrico. Sua mãe veio visitá-la.
Mãe: trouxe uma chave de fenda você pode livrar-se da cabeça e da loucura nela instalada.
Lelé desparafusou a cabeça. A mãe não aceitou a cabeça de volta. Resolveram jogá-la na latrina. Saíram de mãos dadas do hospital.

Versão do pai: viver com uma mulher com cabeça já é difícil imagine sem cabeça nenhuma. Ele vê o transplante como uma causa justa mas de conseqüências inaceitáveis. Paga o dobro para a equipe médica fingir tudo. Já que lelé jamais enxergou nunca saberia que a cabeça sobre os seus ombros não é a da sua mãe. O transplante fingido é realizado. Lelé acorda e sente a cabeça sobre o ombro. Vê as imagens encomendadas pelo seu pai a uma equipe de cinegrafistas profissionais. Lelé dacucou. Preferiu ficar com os olhos fechados para sempre. Agora vê melhores paisagens quando imagina ou quando sonha.

Versão da mãe: coração de mãe não se engana. Ela descobre os planos de lelé e foge com o marido. Antes disso contratou uma dublê que a substituiu e ao ser degolada sangrou até morrer. Mesmo assim o transplante foi realizado. E veio o inevitável problema da rejeição. Lelé passou a refazer os cálculos procurando o erro e passou tanto tempo refazendo tudo que esqueceu que não tinha cabeça e vive até hoje sem maquiagem sem brincos e sem xampu.

Versão da lelé: posso não ter cabeça mas não sou idiota. Qualquer pessoa de bom senso sabe da impossibilidade de alguém nascer sem cabeça e sobreviver. Não sou lelé nem dacuquei tudo não passa de uma mera obra de ficção.

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