quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

AS FORMAS DO SILÊNCIO

Rúbia entrou no quarto com o facão escondido sob a blusa. Fechou a porta e retirou a chave. Vi todo o movimento, mas fingi estar dormindo. Sempre em decúbito lateral direito eu deitava virado para ela, observava seus cabelos negros sobre a pele ressecada pelo sol e sentia o seu hálito quente no meu rosto. Naquela noite escolhi o decúbito lateral esquerdo, dei as costas para ela e esperei os golpes. O primeiro veio na altura do pescoço, o segundo no rim, o terceiro nas costas, Rúbia era forte e rápida, cortadora de cana, acostumada com essas coisas rudes.
Existem duas maneiras de ficar em silêncio.
A minha preferida é ficar em silêncio falando.
Consiste em não falar coisa com coisa, de preferência com um interlocutor que, obviamente, não quer o seu silêncio de maneira alguma, e aceita qualquer assunto que for tocado.
Por exemplo, falei num determinado momento a respeito da sombra que a porta provoca dentro da casa.
Ela disse que quem provoca a sombra dentro de uma casa é o teto.
Se a casa tiver teto, respondi.
Toda casa tem teto, aliás, teto é sinônimo de casa, sabia?
Conheço gente que mora em casa sem teto, sem paredes e sem cômodos.
Se não tem paredes nem teto, como fica a história da porta fazendo sombra?
Explico, quando num piso qualquer, com a ajuda de um pedaço de pau ou de um giz, riscamos o desenho de uma casa, fazemos o contorno e as divisões dos cômodos, e mostramos esse desenho pra alguém, o primeiro olhar vai para a porta de entrada, perguntam logo, como entramos na casa?
E daí?
Daí a sombra da porta se sobrepõe sobre todo o restante da casa.
Então você fala não da sombra sob a luz que se forma, e sim da sombra metafórica da porta que se abre para a casa.
Na verdade eu falava a respeito da sombra que se forma sob a luz, eu ainda não havia pensado dessa maneira que você mencionou, mas gostei disso.
Noutro momento falei a respeito das cores das folhas, defendi a idéia de que todas as folhas tem a mesma cor.
Impossível, respondeu de imediato. Basta comparar uma folha com outra e essa idéia estará liquidada.
Tem certeza?
Tenho.
Eu estava tranqüilo, não havia folhas nas nossas árvores. Encontrei folhas de papel e pintei uma verde clara e outra verde escura.
Assim é muito fácil. E as folhas que não são verdes, onde entram nessa sua teoria?
As folhas que não são verdes, simplesmente não são folhas. São falhas. Entendeu?
Nada que é da natureza pode ser considerada falha. Tudo tem um motivo e uma razão de ser. Essa sua idéia está completamente furada.
Quando eu consegui guardar a saliva suficiente pra regar meu sonho, vou deixar um espaço para que as folhas escapem desse momento e vou mostrar a você como funcionam as cores e as conseqüências.
Então trate de dormir logo. Esse sonho ainda vai demorar muito.
Noutro momento falei a respeito do homem que preferia o silêncio sem falar. Ela queria saber como isso era possível. Então calei. Fiquei alguns dias sem deixar que a contestação a alimentasse. Ela não suportou.
O silêncio sem falar é o mesmo da morte, não há como dividir as palavras que não são mencionadas. Não ofereci a ela nem um grito enquanto o facão me atravessava.

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