segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ENTRADAS E BANDEIRAS

ENTRADAS E BANDEIRAS


Pelas minhas contas seria o quinto. Cinco pessoas levaram a minha história e não entregaram à pessoa certa. O mesmo enredo em cinco versões diferentes e não consegui sensibilizar ninguém. Uma coisa é a história na cabeça a outra é a narrativa, se for falada então, talvez até complique. A história no papel nos dá a possibilidade de correção, de acertos, de supressão e acréscimos, coisa que a narrativa oral não nos permite, apesar do auxilio do gesto, da entonação da voz, mas as pessoas guardam apenas as imagens que formam nas suas cabeças. No jaleco do doutor estava escrito Residente do Hospital Geral do Recife, mandaram um novato residente, os antigos não me agüentavam mais. Com a alternância de surtos, lucidez, medicamentos, passeios pelo pátio, conversas com outros eternos internos, e outras atividades que eles criam e chamam de terapia ocupacional, eu nunca sabia com certeza quando estava lúcido ou surtado. Quero dizer surtado na concepção deles. O médico era jovem. Eu o aconselhei seguir a Neurologia, dava mais dinheiro, li num artigo da revista médica. Ele sorriu, quando eles não têm nenhuma resposta ou a resposta vai provocar algum desconforto, eles sempre sorriem. A janela do consultório era larga, o pátio ao fundo repleto de árvores, estava inclinada, levantei e aprumei a janela de acordo com a minha vontade, o médico acompanhou a inclinação e os seus óculos saíram um pouco do lugar. Retornei à minha cadeira, enquanto deixei o corpo ainda lá fora respirando a paisagem. Sou motorista de táxi. Meu táxi não tem rumo como todos os outros, quem estipula o rumo é o passageiro. A única coisa que necessito para o meu táxi é o combustível, o resto completo com o meu corpo. Ele está lá fora nesse momento, mas quando os fatos ocorreram, estávamos todos juntos, o táxi, eu, meu corpo, os passageiros, o caminho e o indispensável combustível. Na Avenida Boa Viagem, três jovens de vinte e poucos anos, talvez um pouco mais, no banco traseiro, era sábado e a praia prendia outros jovens, pelos pés, pelos cabelos, pelo sal, para fincarem bases na praia, e os três ali bem vestidos no banco traseiro. Perfumes caros, maresia e desconfiança impregnaram o interior do veiculo. O destino era aqui, Hospital Psiquiátrico do Recife, Rua do Padre Inglês. Dois bem claros e o do meio avermelhado talvez por estar imprensado entre os outros dois, talvez por estar amordaçado e amarrado. Certa vez fui amordaçado, um ritual que criei em busca de uma rima, outras pessoas não entenderam e me fizeram perguntas cujas respostas eu sabia mas não poderia pronunciar. Foi uma das piores torturas que já passei em toda a minha vida, o rapaz forçava as palavras na mordaça e elas molhavam e escorriam pelo canto da boca. Aquilo estava me deixando nervoso. Pedi para que retirassem a mordaça, no que fui rechaçado imediatamente. Forcei os caminhos da velocidade da minha luz, e cheguei a tempo de não me exceder. No estacionamento o carro parado as quatro portas abertas e pernas e braços e socos e pontapés para retirar o rapaz do meio. Assuntos de família não me meto, mas a mordaça me tornou irmão de um daqueles e os meus braços penetraram na situação, qual um fórceps, mas não consegui retirar o que era preciso dali, ao contrário, fui incluído como se fosse parte do problema e os três me amarraram me amordaçaram e me internaram. Meu táxi tem um dispositivo que o torna alado após alguns meses de inatividade. Não sei quantos meses já sofri aqui ou permaneci acordado, depois dê uma olhada no meu táxi voando ou ainda estacionado lá fora, vai depender da quantidade de meses, não sei. O número da placa, a cor, os adesivos, aqui estão. O residente é jovem, curioso, tenho certeza que vai procurar e entender tudo. Vai encontrar estacionado o carro com as características que falei, a mesma cor, a mesma placa. Num Hospício separam os internos por alas de acordo com o nível de lucidez, por este motivo, algumas narrativas parecidas provocam rachaduras no entendimento médico. Três motoristas contam a mesma história e os três automóveis estão lá fora abandonados. O residente entende que a culpa os obriga a liberá-los e a observar com mais cuidado os três rapazes de Boa Viagem que, estranhamente, não gostam de sol e que de vez em quando, desviam cidadãos para o abismo da loucura. Minha narrativa dessa vez encontrou o ouvinte certo. Recebi alta juntamente com meus dois companheiros. Meu corpo misturado ao pátio nunca mais, nem idéias turvas, vontades magoadas, felizmente encontrei dois companheiros com boa memória, repetiram incessantemente, a historia que nos deu a liberdade. A janela do pátio nos mostrava os automóveis que nos inspiraram essa idéia, a ingenuidade da juventude nos salvou. Respiramos um ar diferente depois do muro do Hospício, um ar sem remédios, sem remendos, agora precisamos aprender a procurar novos surtos.

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